Wednesday, April 23, 2008

Guerra em ...


A extraordinária e maravilhosa universidade de mímicos tem uma tradição milenar de batalhas, duelos e disputas entre seus pupilos que a torna um dos cursos mais requisitados e temidos de toda história da enceneção abstrata. Não que hajam outras faculdades de mímicos famosas, ou mesmo outras faculdades de mímicos no mundo, mas isso é pura retórica, e um mímico não se humilha com discussões.
Esse templo do saber é localizado em um beco de Paris, no centro, para onde convergem os mais nojentos cafés literários, pintores pobres e qualquer outro tipo de artista fracassado de renome. Lá se encontram os maiores talentos da "arte de Mimos", como não dizem os mímicos. Infelizmente, existe pouco espaço no mundo da arte para esses nobres pseudo-atores em preto e branco, por isso a concorrência tão acirrada os fazem cometer as piores atrocidades. Certa vez, Hum-hum e Clap!, dois mestres da arte de Mimos, tiveram uma discussão durante o desjejum por causa de um croissant imaginário que uma menina deu para eles. Clap! era da velha escola, e portanto o protocolo exigia que Hum-hum cedesse a ele a primeira apresentação. Hum-hum, porém, cansado das condições precárias de trabalho e daquela hierarquia idiota, resolveu criar uma revolução, e prendeu Clap! numa caixa. Hum-hum, porém, não contava com a audácia de seu adversário e, em uma jogada inesperada, Clap! criou uma porta, saiu e deu um tapa estrepitosamente silencioso a três metros de Hum-hum.
A contenda foi se elevando a tal nível que a universidade entrou em guerra; os alunos de Clap! se prepararam criando barricadas às apalpadelas e carregando suas bazucas imaginárias. Mal sabiam eles que Hum-hum e seus comparsas armavam uma trama diabólica para assassinar Clap! e derrubar o antigo regime mímico. Em conjunto, os alunos de Hum-hum enceneram uma das mais famosas histórias jamais encenadas na história da arte de Mimos, "A batalha de Mimos e Argh". Nessa história, Mimos e Argh, os fundadores da escola, tiveram uma disputa pelo poder. E está no livro jamais escrito dos mímicos que só duas pessoas podem encenar essa história, e aquele que encenar Mimos nunca mais poderá encenar nada. Por essa razão, ninguém jamais teve coragem de encená-la, ninguém jamais sequer ousou. Ninguém jamais sequer ousou ousar. O único que tentou fazer isso foi expulso pela escola e se mudou para uma fazendinha na Espanha, onde tem um rebanho de ovelhas que se chamam Número 23. Ninguém jamais soube o nome dele(talvez porque ele nunca o pronunciou), portanto consta dos arquivos que ninguém encenou essa batalha.
Astutamente, os alunos de Hum-hum fizeram o prólogo da história, explicando os detalhes por meios de mímicas incompreensíveis mesmo entre eles. E fizeram a apresentação do vilão Argh, com gestos macabros e insinuantes, e nesse momento entrou Hum-hum triunfante. Clap! entrou numa espécie de apatia surpreendente, logo ele que abordava todos sempre com sua simpatia alegre e tremendamente irritante. Mesmo assim, quando os rebeldes fizeram a sua apresentação de herói da forma mais desdenhosa e épica, ele entrou. Acontece que Clap! era um conservador, e para ele as regras estavam acima de tudo, até mesmo de seu lugar entre os mímicos.
No entanto, antes que Hum-hum fizesse o primeiro gesto da batalha, "a cuspida da traição", Clap! tomou a frente e fez a reverência. Todos os mímicos da rua pasmaram diante do gesto, que tinha dois significados possíveis: ou Clap! estava admitindo sua derrota frente a Hum-hum, e nisso era no que a maioria estava disposta a crer, ou então era outra coisa. Acontece que existem duas formas de interpretar uma mímica: o seu significado real, aquilo com que o gesto parece quando é esboçado, como uma mancha no vidro que parece um santo, ou o outro significado. O outro significado pode ser exatamente qualquer outro significado, afinal não estamos falando de uma ciência exata aqui. E era nessa dúvida que todos estavam, pois ninguém, nenhum daqueles idiotas vestidos em tons monocromáticos, sabia os detalhes d´A Batalha de Mimos e Argh.
O suspense foi demais para Hum-hum, que em desespero e mutismo extremos, subiu o indicador até a cabeça e acionou o gatilho de polegar. Todos os companheiros de revolução o acompanharam, alguns enforcados, outros envenenados e houve até um, ousado, que mergulhou de cabeça da calçada para a sarjeta. Em festa, os vencedores da guerra levantaram suas mãos abertas e balançaram no ar freneticamente, o gesto caracterísco de Clap!. Até que uma senhora, muito gentil e descuidada, apareceu com um croissant de verdade naquela rua faminta.

1 comment:

A TrupE said...

Uma história triste, sobre traição, poder e corrupção. O autor se declara, senhoras e senhores, culpado!